São Paulo
está matando a própria cultura', diz curador alemão de arte urbana
Clarissa
Neher | Deutsche Welle | São Paulo - 27/01/2017 - 18h01
Curadores e colecionadores de arte urbana
consideram iniciativa da prefeitura de apagar grafites uma forma de censura;
cidade é referência mundial, com obras que entraram para a História da arte
A iniciativa do prefeito João Doria de apagar
grafites em São Paulo causou indignação entre artistas e têm impulsionado
protestos na cidade. Especialistas em arte urbana ouvidos pela DW
Brasil consideram a medida uma forma de censura e criticam a ausência
de embasamento técnico para a decisão.
"São
Paulo está matando sua própria cultura", diz o curador alemão e
especialista em arte urbana não-autorizada Robert Kaltenhäuser. "Talvez se lerá sobre isso nos livros de
história no futuro, assim como hoje lemos sobre a tentativa dos fascistas de
eliminar a arte moderna considerada 'degenerada'. Talvez os murais terão que
ser restaurados por milhões daqui a 20 anos."
Já durante a campanha eleitoral, Doria anunciou que
iria combater as pichações. Ao tomar posse, o tucano instituiu o programa
Cidade Linda e mandou pintar de cinza muros que expunham grafites. O programa
da prefeitura acabou com o maior mural de grafite a céu aberto da América
Latina, na Avenida 23 de Maio.
Do dia para a noite, obras de cerca de 200
grafiteiros na avenida foram cobertas de cinza. O projeto artístico,
encomendado pelo ex-prefeito Fernando Haddad, custou 1 milhão de reais. Apenas
oito obras foram preservadas. Segundo a prefeitura, foram apagadas pinturas que
estariam danificadas devido à ação de pichadores e do tempo.
Para o diretor da Galeria Kronsbein, de Munique,
Valeri Lalov, uma decisão como essa só poderia ter sido tomada após uma
avaliação sobre as obras feita por especialistas. A análise deveria abordar
aspectos como autor, significado e mensagem da arte, além de verificar se
realmente os desenhos estavam danificados e poderiam ser apagados.
Grafiteiros em SP: 'não há nenhuma cidade no mundo que tenha atualmente tanto significado para a arte urbana global como São Paulo', diz Robert Kaltenhäuser
O colecionador alemão de arte urbana Rik Reinking,
avalia a iniciativa da prefeitura de São Paulo como um claro sinal.
"Infelizmente, um sinal na direção errada, pois se trata, primeiramente,
de censura ao pensamento livre e à criatividade", destaca o especialista,
que possui obras de artistas brasileiros de renome, como Os Gêmeos, Vitché e
Herbert Baglione.
Grafite como arte
São Paulo é considerada a capital mundial do
grafite. Dela saíram muitos artistas consagrados internacionalmente, como Os
Gêmeos, Eduardo Kobra, Nunca (Francisco Rodrigues da Silva), Zezão, Vitché,
Herbert Baglione e Tinho (Walter Nomura).
"Além de Nova York, não há nenhuma cidade no
mundo que tenha atualmente tanto significado para a arte urbana global como São
Paulo", afirma Kaltenhäuser, acrescentando que na cidade brasileira foram
criadas novas formas de grafite que inclusive já entraram para a História da
arte.
O grafite moderno surgiu no fim da década de 1960,
nos Estados Unidos, e usava basicamente a escrita como forma de manifestação.
Em meados da década de 1980, esse estilo tornou-se um fenômeno em Nova York,
com a publicação de livros e filmes sobre o tema. Nesta época, foi consagrado
um dos artistas mais conhecidos da cena, o norte-americano Jean-Michel
Basquiat.
A partir de meados de 1990, foram desenvolvidas
novas técnicas artísticas, incluindo a redescoberta do mural – com pinturas de
grande extensão e motivos variados. E, neste desenvolvimento, o Brasil e
principalmente artistas de São Paulo, como Os Gêmeos, têm um papel fundamental.
De acordo com Kaltenhäuser, o desenvolvimento desta
técnica no país está relacionado às dificuldades de acesso à tinta de spray, no
final dos anos 1980. Para superar essa barreira, artistas urbanos brasileiros
passaram a usar tinta látex para pintar grandes superfícies, inspiradas na
cultura popular latino-americana.
Acesso ao público
No caminho inverso ao de São Paulo, outras
metrópoles mundiais, como Londres, Nova York e Berlim, usam a arte de rua para
promover o turismo – apesar de proibirem grafite em espaços não-autorizados.
Na capital alemã, por exemplo, a página da própria
prefeitura na internet oferece dicas de passeios destacando obras de
grafiteiros de renome presentes na cidade, incluindo um mural de Os Gêmeos.
Neste ano, será inaugurado ainda na capital alemã um grande museu de arte
urbana contemporânea, o Urban Nation.
Em 2013, Frankfurt promoveu uma grande exposição a
céu aberto com artistas urbanos brasileiros. Nunca, Zezão, Tinho, Jana Joana,
Vitché, Alexandre Orion, Herbert Baglione, entre outros, coloriram a cidade com
suas obras. Há murais de brasileiros em outras cidades alemãs, como Munique e
Wupertal.
A diretora do Museu Urban Nation, Yasha Young,
destaca que o principal diferencial deste tipo de manifestação artística é a
sua aproximação e seu diálogo direto com o público.
"Nenhuma outra forma de arte é tão próxima das
ruas, dos bairros e dos seus moradores. A arte urbana não segue objetivos
comerciais, ela estimula a reflexão, além de inspirar, embelezar, irritar,
movimentar, unir e ser vista por todos. Assim, por meio de posições artísticas,
são transmitidas a um público amplo mensagens críticas da sociedade sobre
acontecimentos mundiais atuais", afirma Young.
Inspirada em Miami
Sob críticas, a prefeitura de São Paulo alega que o
projeto Cidade Linda visa valorizar a arte urbana na cidade e reservará espaços
autorizados para essa prática. Doria anunciou que pretende criar um
grafitódromo inspirado num projeto de Miami. Para o curador alemão
Kaltenhäuser, a ideia é absurda.
"São Paulo foi a inspiração para o projeto de
Miami, cidade que não tem tradição em arte urbana. Ele quer destruir algo
nativo para copiar uma cópia do modelo da sua própria cidade. Seria como se a
Alemanha resolvesse destruir todas as cervejarias daqui para importar o modelo
dos Estados Unidos", argumentou Kaltenhäuser.
Apesar de condenar a decisão de apagar grafites, o
especialista acredita que ela pode ser vista também com um novo desafio para a
arte.
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