Sou professora. Estou em
greve. E explico o porquê
Renata
Hummel | São Paulo - 23/04/2015 - 13h58
Tem gente cantando 'o professor é meu amigo, mexeu
com ele, mexeu comigo' nas Assembleias. Tem gente discutindo a importância de
uma escola pública de qualidade. Por isso, dessa vez estou acreditando
firmemente que 'não tem arrego'
Fotos Mídia Ninja
Sou professora do Estado de SP desde 2009. E já
mergulhei na divisão em “categorias”. Entrei como “categoria L”, ou seja,
não-concursada, e pegava apenas aulas que “sobravam” dos efetivos.
Essa categoria não existe mais, foi substituída
pela “categoria O”, onde está a maioria dos contratados. A categoria “O” é o
que há de mais precário na rede: só pode ter duas faltas por ano, não tem
direito a usar a assistência médica do estado (Iamspe), não tem direito à
aposentadoria profissional (SPPrev), após um ano de contrato deve cumprir
“geladeira” por 40 dias, e após dois anos de contrato deve cumprir a
“duzentena” (200 dias sem poder pegar aula, ou seja, quase um ano forçadamente
desempregado). Nessa situação de “O”, estão “só” cerca de 50 mil
professores da rede estadual. Como alguns colegas me disseram: para o governo,
“somos uma sopa de letrinhas”.
Está bom ou quer mais? Tem mais.
A gente leva um susto quando entra na rede. Na
licenciatura, muito professor (que está sem entrar na sala de aula de ensino
fundamental e médio há uns 15 anos) nos diz que o problema da escola pública
são as aulas “tradicionais”, sem imaginação, sem criatividade. Que o problema está
na forma de ensinar, “conteudista” (com “decoreba”) e não “construtivista” e
por aí vai.
Não é que essas coisas não sejam problemas, porém o
buraco é mais embaixo. Vou explicar melhor: é certo que é difícil falar de
Revolução Francesa para jovens que estão mais interessados em outras coisas (em
muitas outras coisas), e que não veem como saber algo que aconteceu em 1789
possa fazer alguma diferença em 2015, por exemplo. Mas mais difícil ainda é
conseguir falar 5 minutos em uma sala lotada com 40 jovens ou mais, em um dia
de verão, com um ventilador apenas funcionando e sem água nas torneiras.
É complicado explicar como funcionam os “três
poderes” no Brasil enquanto grande parte dos estudantes insiste que “político é
tudo ladrão” e que por isso não interessa nem saber como funciona o sistema,
“pois só o que eles fazem é roubar”. Mas mais complicado ainda é lidar com
bombas que explodem nos banheiros, brigas por motivos fúteis (escapei algumas
vezes, e por pouco, de cadeiradas e de um soco na cara), fogo quase diário nas
lixeiras, xingamentos variados (muitas vezes vindos dos pais dos alunos e não
dos alunos), reclamações da coordenação e da direção de que você “não consegue
controlar a sala”, como se esse fosse o único objetivo da nossa formação e
trabalho.
O buraco é mais embaixo quando você tem que lidar
com alunos especiais em sala sem qualquer formação ou material próprio para
isso (e junto com outros 40 jovens pedindo atenção); quando não tem como
imprimir textos para leitura, imagens, ou mesmo provas, porque não tem toner
nem folha de papel, e aí você imprime com seu salário; quando você tem que
disputar a tapa com outros professores a única sala de vídeo que há na escola;
quando você quer trabalhar em conjunto com outras disciplinas, mas não há tempo
para conversar com os outros professores; quando o mato da escola está
altíssimo e não tem verba para cortar; quando não tem papel higiênico; quando
ninguém limpou as salas porque as moças da limpeza são terceirizadas, a empresa
declarou falência e elas não recebem salário há dois meses; quando a cozinha
foi terceirizada e enquanto não chegam as novas trabalhadoras precarizadas os
alunos têm que comer bolachas com manteiga; quando mais da metade de seus
colegas toma estimulante ou fluoxetina para aguentar o tranco de dar aulas em
duas ou três escolas diferentes, das 7h da matina às 23h; quando seu salário,
mesmo trabalhando em duas escolas diferentes, cerca de 40 horas por semana (40
horas por semana são as cumpridas na escola, não as de preparação e planejamento
de aulas, correção de trabalhos – essas, me arrisco a dizer, ultrapassam esse
tempo em umas 15 horas a mais), com cerca de 700 alunos, não chega a R$ 2.600.
Está bom ou quer mais? Tem mais.
Este ano, a situação que já era essa que contei
acima, piorou. O governador Geraldo Alckmin, dando continuidade ao
cuidadoso processo de destruição da escola pública iniciado nos governos
anteriores, fechou cerca de 3.000 salas de aula (qualquer sala com menos de 30
alunos inscritos no começo do ano foi fechada e seus alunos redistribuídos em
outras), extinguiu cargos de coordenação, remanejou funcionários que tinham
mais de 20 anos de escola (na minha escola, a “Tia Cris“, funcionária de
gerações e gerações na escola, foi remanejada para outra, e a choradeira que assisti,
entre alunos e professores, foi de cortar o coração), cortou verbas (de
pintura, jardinagem, folhas de sulfite, papel higiênico, sabonete, toner,
consertos em geral, infraestrutura das salas, etc), forçou a duzentena na
“categoria O” e decretou “reajuste zero” para os professores, sem cobrir sequer
a inflação do período.
Quer mais ou está bom?
Ah, não tem como esquecer o famigerado “bônus”,
cópia bizarra de uma política norte-americana de premiação de professores
conforme resultados de alunos, resultado esse medido em uma prova apenas (ora,
mas não éramos construtivistas?). Um bônus que pune escolas com problemas
sérios (culpa dos professores?), e premia apenas parte da rede, como se apenas
alguns colegas tivessem trabalhado e outros não. Dito isso, que solução temos
nós, profissionais da educação, a não ser entrar em greve?
Entrar em greve significa ter desconto de salário,
ter faltas no prontuário, ter que repor as aulas em sábados, contraturnos ou
recesso, ouvir de pais e alunos que “professor ganha bem, tem férias de 30 dias
e reclama de barriga cheia”, ouvir de colegas de trabalho que “professor
grevista gosta é de ficar dormindo em casa enquanto os outros trabalham”,
visitar escolas com comando de greve e ter que explicar o que está fazendo para
os policiais que a diretora chamou (não aconteceu comigo, mas com vários
colegas), acompanhar as negociações na Assembleia Legislativa e na Secretaria
de Educação, aguardando horas na chuva para ver o que o governo ofereceu e sair
de lá chateado porque não querem nem conversar, ir a todas as Assembleias na
sexta, com mais de 60 mil professores, e nenhuma TV ou jornal dar sequer uma
linha (e quando dá, não escuta nenhum professor, apenas reproduz a pauta do
governo).
Entrar em greve é receber também apoio de muita
gente, inclusive alunos, que quando resolvem entrar na briga também (faltando
no dia das Assembleias, criando debates e discussão de ideias, acompanhando os
passos dos professores) sofrem repressão nas escolas (alguns colegas marcam
provas justamente nesse dia, algumas direções recusam os pedidos de debate dos
alunos, alguns chegam a receber advertências e telefonemas para os pais), com
direções e supervisões (que em maioria são cargos indicados) que nos acusam de
“fazer a cabeça” dos estudantes ou de “atrapalhar” o aprendizado.
Entrar em greve é ter que lidar com a desconfiança
no principal sindicato (enquanto os outros sindicatos se reúnem secretamente
com o governo no meio da greve), pois a sua presidente terminou uma greve em
2013 contra a vontade de grande parte dos professores, aceitando migalhas do
governo: o fim da quarentena, um concurso público e a inclusão do “categoria O”
no Iamspe, dos quais o governo só cumpriu um (e mesmo assim, precariamente,
pois grande parte dos professores que iriam ser chamados ainda não foram e
estão trabalhando como contratados). É ter que estar com um olho no governo e
outro no sindicato.
E, mesmo assim, com tudo isso e apesar de tudo
isso: estamos em greve. Estou em greve.
Dessa vez, tudo parece diferente das outras: tem
muita gente nas redes sociais nos ouvindo (embora na imprensa tradicional tudo
continue como sempre foi), nos apoiando, tem muito aluno participando, tem
muito colega que disse que nunca mais parava por causa do sindicato, parado.
Tem muita gente exigindo uma postura firme do
sindicato, da presidente, dos partidos. Tem gente cantando “o professor é meu
amigo, mexeu com ele, mexeu comigo” nas Assembleias. Tem gente discutindo a
importância de uma escola pública de qualidade. Por isso, dessa vez estou
acreditando firmemente que “não tem arrego”.
Escrevo este texto na véspera da negociação com o
governo (que se encerrou no início da tarde de quinta-feira 23 de abril e não
resultou em nenhum avanço) e da nossa importante assembleia de sexta. As
definições dessa semana não apenas podem decidir o futuro da categoria de
professores, mas o futuro da escola pública. Aguardemos.
Renata Hummel é professora de
sociologia na rede estadual paulista. Graduada – bacharel e licenciada – em
ciências sociais pela PUC-SP , com especialização em história, sociedade e
cultura pela PUC-SP. Também foi colega dos editores de FAROFAFÁ e Samuel no curso de jornalismo da ECA-USP.
#JornalistasLivres em defesa da democracia: cobertura
colaborativa; textos e fotos podem ser reproduzidos, desde de que citada a
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