Associação Latino-Americana de Sociologia repudia perseguição política a professores brasileiros
Alguns professores 'vêm sendo acusados de 'comunistas' e 'socialistas', como se esses rótulos representassem posições ilegais ou moralmente inadmissíveis em sociedades democráticas, pluri-ideológicas e pluripartidárias', diz Alas
Em nota publicada nesta segunda-feira (09/05), a Alas (Associação Latino-Americana de Sociologia) repudiou discriminações ideológicas relacionadas à atual crise política vivida no Brasil. De acordo com a entidade, professores da área estão sendo rotulados como comunistas, sendo perseguidos e até mesmo demitidos sem justa causa das escolas onde trabalham por pressão de pais de alunos.
“Como uma associação internacional de estudos sobre a sociedade, comprometida com os valores democráticos, a liberdade e a igualdade para todas e todos, a Alas não pode furtar-se a chamar a atenção dos(as) cientistas sociais brasileiros(as) e latino-americanos(as) para o fato de que essas atitudes guardam relação não acidental com um momento histórico cruel e obscuro da história recente da humanidade, que se expressou no nazi-fascismo, na perseguição política e social e no genocídio”, disse a Associação.
Entre outros exemplos, o texto cita nominalmente Paulo César Ramos. O caso do professor de Indaiatuba, cidade do interior de São Paulo, foi noticiado no Painel Acadêmico no mês passado. Após mais de um ano dando aulas de Sociologia e História sem maiores problemas, o profissional – formado em Ciências Sociais pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e atualmente doutorando na USP (Universidade de São Paulo) – foi dispensado sumariamente do Colégio Candelária sem nenhuma justificativa que tenha ido além de reclamações de pais de alunos sobre sua postura em sala de aula.
“Quando eu recebo a demissão e a justificativa é baseada em supostas posturas em sala de aula, eu quero saber exatamente quais foram essas posturas. Isso não foi explicado, em momento algum. O que foi insinuado é que pais de alunos estavam reclamando que eu defendia o comunismo em sala de aula”, afirma Ramos. “Não houve uma conversa. Me disseram que eles não tinham a obrigação de dar este tipo de explicação. Acredito ter indícios para supor que minha demissão tenha se dado por perseguição política”, continua.
A suspeita do professor é fundada nas reações negativas de alguns alunos a uma sequência de postagens feitas por ele em seu perfil no Facebook nos dias 4, 11 e 16 de março, nos quais defendeu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Vários comentários foram feitos pelos jovens nas publicações, muitos com ofensas. Na oportunidade, a escola não retornou os contatos da reportagem de Painel Acadêmico.
[Leia a história completa sobre a demissão de Paulo César Ramos]
Filiado ao PT, docente afirma que escola o demitiu sem justa causa após
ceder a pressão de pais de alunos que o acusavam de comunista
Pouco mais de um ano de “lua-de-mel”. Foi isso o que Paulo Ramos viveu
no Colégio Candelária, em Indaiatuba, no interior de São Paulo. De janeiro de
2015 até a semana passada, quando foi demitido sem explicações claras, o
professor mantinha boas relações com colegas, estudantes e com a direção da
escola que é famosa na região por ter Kim Kataguiri, fundador do MBL (Movimento
Brasil Livre), entre seus alunos egressos.
“Fui para Indaiatuba por motivos
familiares, minha esposa é de lá. Aí eu comecei a dar aula em 2015. A escola é
muito boa. Eu planejava colocar minha filha de 3 anos para estudar lá no
futuro", afirma Ramos.
Formado em Ciências Sociais pela UFSCar (Universidade Federal de São
Carlos), Ramos é atualmente doutorando na USP (Universidade de São Paulo). Em
razão dos estudos e do novo emprego, não tinha mais muito tempo disponível para
a militância política que exercia desde os tempos de graduação. Secretário de
Promoção da Igualdade Racial do diretório estadual do PT (Partido dos
Trabalhadores) em São Paulo, dedicava dois dias da semana ao partido e
planejava encerrar seu mandato este ano.
Apesar de nunca ter tocado sobre o assunto no colégio, ele acredita que
a filiação partidária - facilmente encontrada nos primeiros resultados de uma
pesquisa no Google - pode ser uma das razões de sua demissão, ocorrida no dia 6
de abril. Os argumentos da coordenação para o seu desligamento, no entanto,
foram evasivos. A justificava, sem explicações claras, limitaram-se a creditar
a demissão como um resposta a reclamações feitas por pais de alunos contra sua
postura em sala de aula.
“Quando eu recebo a demissão e a justificativa é baseada em supostas
posturas em sala de aula, eu quero saber exatamente quais foram essas posturas.
Isso não foi explicado, em momento algum. O que foi insinuado é que pais de
alunos estavam reclamando que eu defendia o comunismo em sala de aula”, afirma
Ramos. “Não houve uma conversa. Me disseram que eles não tinham a obrigação de
dar este tipo de explicação. Acredito ter indícios para supor que minha
demissão tenha se dado por perseguição política”, continua.
Chamado à sala de Recursos Humanos do colégio na manhã de quarta-feira
da semana passada, o professor, que se preparava para entrar em sala de aula,
apenas foi informado que receberia o aviso prévio de sua demissão sem justa
causa.
Ramos procurou então os coordenadores da escola que, segundo o relato,
apenas explicaram que vários pais de alunos enviaram reclamações sobre sua
postura em sala de aula. Nenhuma postura foi detalhada pelos coordenadores que,
aproximadamente 15 dias antes, haviam alertado o professor sobre o risco de
algumas postagens feitas em seu perfil pessoal no Facebook em defesa do
ex-presidente Lula.
Cronologia
Até ali, sua relação com a escola e os alunos era excelente. Responsável
pelas aulas de História para os 8º e 9º anos, Sociologia para o ensino médio e
Atualidades para o cursinho pré-vestibular, Ramos estava contente com a
possibilidade de rever conteúdos que havia trabalhado apenas na graduação.
“Quando eu comecei a dar aula de
Sociologia, de fato eu me encantei com o conteúdo. Eu podia resgatar os
clássicos, coisas que eu não tinha mais contato. Durkheim, Weber, Marx, Lévi-
Strauss. Uma série de autores que estavam esquecidos para mim de certo modo”,
explica.
Com métodos criativos, as aulas de Ramos faziam sucesso na escola.
Cine-debates, exibição de séries de TV, música. Os alunos chegaram até mesmo a
se reunir para agradecê-lo e dizer que era um ótimo professor.
Ele conta que a avaliação da coordenação da escola também era positiva.
O aumento no número de aulas concedidas no início de 2016, quando sua carga
horária praticamente dobrou, demonstra que o Colégio confiava, de fato, em seu
trabalho.
Contudo, se na escola tudo parecia bem, nas redes sociais o professor
começou a enfrentar problemas neste ano. Uma sequência de posts feitos nos dias
4, 11 e 16 de março, com comentários em defesa do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, gerou reações negativas de alguns alunos no Facebook. Vários
comentários foram feitos pelos jovens na publicação, muitos com ofensas.
Da internet, a discussão foi parar na escola. No dia seguinte a última
postagem, Ramos foi chamado para conversar por um dos coordenadores, que
mencionou a discussão sobre Lula no Facebook para sugerir ao professor que se
preservasse nas redes sociais. Alguns pais de alunos teriam reclamado não só da
situação, mas acusado o professor de falar bem do socialismo em sala de aula.
“Tem um capítulo da apostila, sobre as bases materiais da sociedade, que
era uma reprodução da Ideologia Alemã, do [Karl] Marx. Como era muito marxista
o conteúdo, eu propus uma análise dos autores que dialogavam à esquerda e à
direita do Marx. John Keynes, Max Weber, Adam Smith. Dei três liberais para um
marxista. E fui acusado de defender o comunismo”, lembra Ramos. “Eu não defendo
o comunismo assim desta maneira, não sou antiquado, não sou prosaico”, se
defende.
No dia 23 de março, novo incidente. Durante uma aula sobre
multiculturalismo e racismo, alguns alunos começaram a provocar Ramos. O
professor - que estuda o tema desde o início de sua formação acadêmica, quando
participou do movimento que implantou o pioneiro sistema de cotas da UFSCar, o
qual mais tarde inspiraria a Lei de Cotas – discutiu com estudantes que exigiam
que ele falasse sobre os prós e contras das cotas.
“Não foi [uma discussão] ríspida. Eu percebi que havia um
constrangimento. Eram só um ou dois alunos que falavam e o resto permanecia
calado. Parecia que a sala estava constrangida”, relata Ramos. Mais nenhuma
reclamação teria sido comunicada ao professor até o dia de sua demissão. Nem ao
menos de quem foi a decisão final para o seu desligamento.
“Minha demissão foi uma medida de exceção. Ela não respeitou nenhum rito
previsível, do ponto de vista da gestão”, disse. “Mas o principal, eu acredito,
seja a pressão dos pais. Por isso que eu acho que foi uma medida de exceção.
Talvez algum pai tenha visto minha relação partidária e pediu para eu sair”.
Apesar de abatido com a situação, Paulo C. Ramos não considera ser o
maior prejudicado com sua demissão. Para o professor, a mensagem
antidemocrática transmitida pela escola tem um efeito devastador justamente
para os alunos que o questionavam.
“A escola não tirou apenas o meu direito de trabalhador. "Ela calou
a voz do aluno que em geral tem algum questionamento a mim, porque ele tem
alguma coisa para falar. A mordaça não foi sobre mim. Eu sou professor, tenho
currículo, vou escrever dois artigos este ano e colocá-los em debate em
congressos científicos. Mas o aluno, perdeu a oportunidade de ser educado,
qualificado enquanto agente político”, lamenta. “Em breve ele vai entender que
o método de resolver divergência é assim. Quando aparecer um problema, você cala
um lado e mantem o outro. Como ela vai conviver com diferente? Em vez de
abraçar ele vai expurgar o diferente. Ele vai se tornar um sujeito
intolerante”, conclui.
A reportagem de Painel Acadêmico procurou o Colégio
Candelária, mas, até o fechamento desta edição, não obteve retorno.
Na nota desta segunda-feira, a Alas afirma que o cenário de perseguição política contra os professores que buscam “o caminho do esclarecimento” é influenciado pela “recente pregação de ONGs e de políticos no sentido que os pais ‘defendam’ seus filhos da ‘doutrinação’ esquerdista, feminista, dos direitos humanos e do pluralismo religioso”.
Apesar de não haver nenhuma citação nominal, o texto pode ser entendido como uma referência ao movimento “Escola Sem Partido”, que defende o “fim da doutrinação de esquerda” nas escolas. O projeto defende que professores sejam proibidos de falar sobre política, questões de gênero, sexualidade e religião dentro de sala de aula. As ideias já foram traduzidas em propostas de lei na Câmara dos Deputados. Um destes Projetos de Lei, recentemente, foi aprovado no Estado de Alagoas, tendo entrado em vigor nesta segunda-feira.
Leia abaixo a íntegra da nota da Alas:
A Associação Latino Americana de Sociologia vem a público expressar sua profunda preocupação e seu repúdio a visíveis sinais, situações e atitudes de discriminação ideológica, relacionadas ao momento político brasileiro e ao nível de polarização encontrado no país. Professores e profissionais associados a perspectivas críticas vêm sendo acusados de “comunistas” e “socialistas”, como se esses rótulos representassem posições ilegais ou moralmente inadmissíveis em sociedades democráticas, pluriideológicas e pluripartidárias. Vários destes profissionais estão sendo perseguidos e, eventualmente, demitidos em instituições privadas, como testemunha o caso do Profº Paulo César Ramos, cientista social, mestre em Sociologia e doutorando em Sociologia pela USP, que foi recentemente demitido da escola em que trabalhava, sem explicações e sem justa causa, por pressão de pais de alunos.
Outro indício de que há uma ofensiva contra professores que buscam o caminho do esclarecimento e da reflexão é a recente pregação de ONGs e de políticos no sentido que os pais “defendam” seus filhos da “doutrinação” esquerdista, feminista, dos direitos humanos e do pluralismo religioso. Médicos deixam de atender crianças filhas de pessoas vinculadas ao partido político no governo, ações agressivas vêm ocorrendo nas redes sociais e figuras públicas e personalidades são hostilizadas por se encontrarem associadas à luta contra o impeachment da Presidente Dilma, independentemente de seu vínculo a qualquer partido ou ausência de vinculação partidária.
Nas últimas semanas viemos acompanhando a repercussão da Palestra proferida pela Dra. Rita Laura Segato no III Ciclo de Debates do Grupo Interdisciplinar de Pesquisas Feministas - GPFEM da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG, que tematizou o “feminismo descolonial”. Nos preocupa a forma como essas atividades, os temas, o Grupo, a Dra. Rita Laura Segatto, a coordenadora do GPFEM, Dra. Anete Roese, têm sido tratadas por parte de alguns grupos e setores conservadores da sociedade. Temos visto reações e manifestações com forte carga de violência, distorcendo tanto o conteúdo das atividades realizadas quanto o seu propósito, colocando em risco a liberdade de pensamento e a produção acadêmica que é própria do espaço universitário. Afirmamos a importância e o caráter imprescindível do trabalho desenvolvido pela instituição e pelo grupo, assim como em todos os espaços de debate e produção dos Estudos Feministas e de Gênero, particularmente quando são vítimas de processos inquisidores, o que por si só demonstra a sua relevância.
Como uma associação internacional de estudos sobre a sociedade, comprometida com os valores democráticos, a liberdade e a igualdade para todas e todos, a ALAS não pode furtar-se a chamar a atenção dos(as) cientistas sociais brasileiros(as) e latino-americanos(as) para o fato de que essas atitudes guardam relação não-acidental com um momento histórico cruel e obscuro da história recente da humanidade, que se expressou no nazi-fascismo, na perseguição política e social e no genocídio. Recomenda, portanto, que a sociedade brasileira atente para esses preocupantes indicativos e que as sociedades latino-americanas englobadas na jurisdição de nossa Associação expressem sua inequívoca solidariedade às pessoas que estão sendo alvo de intimidação, discriminação e perseguição em função de suas posições intelectuais críticas, de esquerda ou vinculadas aos movimentos sociais e populares em nossa região.
Representando o mandato da junta diretora que, reunida em Montevidéu, decidiu fazer este comunicado
Dra. Nora Garita (Costa Rica) e Dra. Ana Rivoir (Uruguai)
Presidenta e vice-presidenta da ALAS
Publicado originalmente no site Painel Acadêmico.
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