Conheça a monja medieval
que foi pioneira ao descrever orgasmo do ponto de vista de uma mulher
Virginia
Mendoza | Madri | Yorokobu - 16/03/2016 - 10h00
Hildegarda de Bingen foi pintora, poeta,
compositora, cientista, doutora, monja, filósofa, mística, naturalista, profeta
e, talvez, a primeira sexóloga da história
Quando a Primeira Cruzada estava a ponto de chegar
a Jerusalém, uma menina chorou pela primeira vez em Bermersheim (Alemanha).
Hildegarda de Bingen nasceu em 1098 e se tornou um dízimo. Como décima filha
que era, seus pais a entregaram à Igreja. Deixaram-na em um mosteiro de monges
de Disivodemberg, o qual mantinha uma ala para mulheres dirigida por Jutta von
Spannheim, que se tornaria mãe e instrutora da pequena Hildegarda. Tinha oito
anos e havia começado a ter visões aos três, mas só depois dos quarenta começou
a escutar uma voz que lhe dizia que escrevesse e desenhasse tudo aquilo que
seus olhos e ouvidos alcançassem.
Tornou-se abadessa depois da morte de Jutta.
Amedrontada por suas visões e previsões, ela convenceu o papa a lhe permitir
escrevê-las, e foi assim que começou a registrar tanto as visões, como livros
de medicina (que hoje consideraríamos superstição), remédios naturais,
cosmogonia e teologia. A partir daí começou a relacionar-se com as autoridades
eclesiásticas e políticas de sua época e se converteu em sua conselheira, algo
impensável tratando-se de uma mulher.
Hildegarda de Bingen e seu legado são impossíveis
de abarcar. Tanto que, apesar de ter sido recuperado depois da esperada
canonização (que ocorreu em 2012), seu lado mais peculiar foi eclipsado por
suas previsões. De tudo o que Hildegarda fez ao longo da vida, o mais
desconcertante, surrealista e contraditório talvez sejam suas considerações
sobre o orgasmo feminino, que bem lhe poderiam valer o título de primeira
sexóloga da história.
Hildegarda falava sem medo de sexo: de uma forma
tão clara, como apaixonada. Foi a primeira a se atrever a garantir que o prazer
era coisa de dois e que a mulher também o sentia. A primeira descrição do
orgasmo feminino do ponto de vista de uma mulher foi a sua. Tinha uma ideia
muito peculiar da sexualidade, levando-se em conta que era monja e vivia no
século XII. Para ela, o ato sexual era algo belo, sublime e ardente. Em seus
livros de medicina abordou a sexualidade, especialmente em Causa et
Curae, onde deu mais detalhes:
Quando a mulher se une ao homem, o calor do cérebro
dela, que tem em si o prazer, faz com que ela saboreie o prazer da união e
atraia a ejaculação do sêmen. E quando o sêmen cai em seu lugar, esse
fortíssimo calor do cérebro o puxa e o retém consigo, e imediatamente o órgão
sexual da mulher se contrai e se fecham todos os membros que durante a
menstruação estão prontos para abrir-se, do mesmo modo como um homem forte
agarra uma coisa dentro de sua mão.
Como protofeminista, Hildegarda tinha uma imagem
muito própria de Eva e do pecado original. Para ela, o único culpado foi
Satanás, invejoso da capacidade da mulher de gerar vida.
Ana Martos Rubio escreve em História
Medieval do Sexo e do Erotismo: “assim como para Agostinho de Hipona (Santo
Agostinho) a concupiscência é o castigo de Deus, para Hildegarda, que não se
atreveu a contradizê-lo e admitiu a ideia de que o pecado original era de
luxúria, a culpa foi de Satanás, que soprou veneno sobre a maçã antes de
entregá-la a Eva, invejoso de sua maternidade. Esse veneno foi, precisamente, o
prazer, e seu sabor, o desejo sexual”. E continua: “O desejo sexual é o sabor
da maçã, De Gustu Pomi, o título da obra de Hildegarda de Bingen na
qual descreve o sabor da condição humana, o delicioso sabor que dá lugar à
peçonha do vício, o prazeroso e embriagador sabor do pecado”.
Em A Medicina Sexual na História. Avanços e
Controvérsias (Parte I), José Jara Rascón e Enrique Lledó
García escrevem que Hildegarda “expõe na obra Liber Compositionae
Medicinae (Livro de Medicina Complexa) a ideia de que em sua potência
geradora, o homem possui três capacidades: o desejo sexual, a potência sexual
(fortitudo) e o ato sexual (stadium)”. E se não ficou claro aos leitores, essa
santa abadessa explica com muito realismo: “primeiro, a libido excita a
potência, de modo que o ato sexual do casal se produz por um íntimo desejo
mútuo”.
Seus poemas também parecem estar carregados de
certo erotismo. Em O Tu Dulcissime Amator, um poema dedicado às
virgens, incluído em Symphonia, diz:
Nascemos no pó,
ai!, ai!, e no pecado de Adão
É muito duro resistir
O sabor que tem a maçã
Eleva-nos, Cristo Salvador
Compartilhou todos os seus conhecimentos medicinais
inspirada na própria saúde precária. Além disso, em Causa et Curae faz
um arrazoado em favor da cerveja: “de sua parte, a cerveja engorda as carnes e
proporciona ao homem uma cor saudável no rosto, graças à força e boa seiva de
seu cereal. Em troca, a água debilita o homem e, se está doente, às vezes lhe
causa malignidade ao redor dos pulmões, já que a água é fraca e não tem vigor
nem força alguma. Mas um homem saudável, se bebe água às vezes, ela não lhe
fará mal”. Tinha um remédio para a ressaca: molhar uma cadela na água e, com
essa água, molhar a frente da pessoa afetada. Ninguém pode ser espetacularmente
irrepreensível.
A saúde da abadessa era tão frágil que em várias
ocasiões recebeu a extrema unção. Só em uma das vezes em que lhe deram por
morta não despertou. E o fez em uma idade impensável numa época na qual a morte
chegava em torno dos quarenta: com 82 anos morreu rodeada de suas monjas.
Oliver Sacks falou de enxaqueca para explicar suas
visões, e o filme Visão da Vida de Hildegarda de Bingen reflete
essas mortes como se se tratasse de catalepsia. Como se ela mesma tivesse feito
o próprio filme mil anos depois, os diálogos estão baseados em frases textuais
extraídas de seus tratados e cartas, e a trilha sonora foi composta por ela
mesma.
O suicídio de uma monja grávida se transformou no
detonador para requerer a ruptura com o mosteiro masculino no qual as monjas
ficavam. Hildegarde propôs fundar um monastério somente para mulheres,
inspirada por uma de suas visões, e conseguiu. Enfrentou a rejeição e ameaças
dos mais próximos, mas entre os mais poderosos ninguém lhe negava nada. Assim conseguiu
fundar o mosteiro que queria, Rupertsberg, mais perto do Reno. Para lá foi com
uma vintena de monjas, algumas das quais se opuseram à sua decisão. Mas não
fundou só um mosteiro: Elbingen foi o segundo, que visitava duas vezes por
semana.
Para Hildegarde não era importante pertencer a uma
ordem de clausura. Além de ter se transferido para o mosteiro e viajar para
encontrar-se com políticos e clérigos, com mais de 60 anos saiu para pregar nas
praças.
Tornou-se um mito entre a comunidade LGTBI por sua
suposta homossexualidade e também um ícone popular e inspirador para diversos
artistas. O cantor e compositor norte-americano Devendra Banhart lhe dedicou o
tema Für Hildegard von Bingen. O escritor britânico Ken Follet
iniciou com a história dela o seu documentário Journey Into the Dark
Ages e reconheceu que Hildegarda inspirou Caris, a protagonista de seu
livro Um Mundo Sem Fim. Foram atribuídas a Hildegarda disciplinas
que nem sequer existiam no século 12, como a antropologia.
Falar de Hildegarda de Bingen é falar de
arrepiantes visões apocalípticas, de remédios naturais para absolutamente tudo
(atualmente um tipo de medicina alternativa alemã parte de seus escritos) e da
primeira mulher que conseguiu ter acesso aos pecados alheios por meio da confissão.
Inventou um idioma, a Lingua Ignota, com alfabeto próprio, que é considerada a
primeira língua artificial e possível precursora do esperanto. É tida como a
pioneira da ópera e há até quem, indo longe demais, se atreveu a considerá-la a
primeira estrela do rock da história.
Andou de braços dados com reis e papas, denunciou
os devaneios dos clérigos e sua voz foi tão valiosa como a dos homens quando as
mulheres viviam no silêncio, em casa ou no convento. Mais do que cair no lugar
comum, dizer que se adiantou a seu tempo é não fazer justiça à personagem. Ela
foi muito mais longe do imaginável no século 12.
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Publicado originalmente em espanhol pelo site Yorokobu
Traduzido por Maria Teresa de Sousa